quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Gravidez na Adolescência: a antropologia numa experiência aplicada

Gravidez na Adolescência: a antropologia numa experiência aplicada

Josineide de Meneses Silva*

Andrea Butto**

Este artigo apresenta algumas reflexões resultantes de uma pesquisa antropológica e experiência prática na área de educação voltada à gravidez na adolescência no distrito de São Domingos - Brejo da Madre de Deus - uma das áreas piloto do Núcleo de Saúde Pública (NUSP) do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco. Tem por objetivo responder principalmente como combinar a antropologia aplicada num projeto de intervenção voltado para a saúde sexual e reprodutiva de adolescentes? Para tanto é necessário conhecer o cenário das nossas ações.

1. Adolescência e saúde reprodutiva: as representações locais

A primeira parte do trabalho realizado por nós em São Domingos consistiu numa pesquisa qualitativa sobre as representações sociais em torno da gravidez na adolescência.

Quanto às informações quantitativas já de início sabíamos que no município os/as adolescentes constituem 20% da população (entre 10 a 19 anos) mas apesar disso não conhecem programas específicos. A mortalidade nessa população é de aproximadamente 5% do total do município e as causas são as doenças do aparelho circulatório, e em menor proporção, as causas externas e as mal diagnosticadas.

As informações relativas à idade da mãe e nascidos vivos do distrito de São Domingos colhidas tanto no cartório de Santa Cruz do Capibaribe como no cartório de São Domingos sobre os anos de 1994 e 1995 (dados parciais), nos foi possível constatar através de uma análise comparativa que houve uma diminuição no número de nascimento entre mães adolescentes. É importante salientar que estes dados podem encobrir o número de gestações entre adolescentes, pois não dispomos informações sobre gravidez interrompida. A partir dessas informações constatamos que em São Domingos a gravidez passou a atingir faixas etárias mais jovens.

Em relação à população adolescente do distrito, as questões que mais mobilizam os serviços de saúde estão relacionadas com a saúde reprodutiva, especialmente DST’s e gravidez. Sobre o atendimento às gestantes procuramos nos inteirar do serviço de acompanhamento pré-natal e descobrimos a partir dos dados obtidos no posto de saúde do Distrito, que a freqüência de grávidas corresponde à taxa esperada de gestantes no país (4%). Mas por falta de registro discriminado por idade, não nos foi possível conhecer o número total, e a freqüência ao posto, de adolescentes grávidas.

A partir das informações secundárias coletadas, percebemos a escassez de dados referentes à saúde reprodutiva adolescente e assistência voltada à população jovem, particularmente sobre a gravidez na adolescência, o que ao nosso ver, pode contribuir para uma mistificação em torno das representações construídas sobre gravidez na adolescência.

Quanto às informações qualitativas, percebemos inicialmente que prevalecia na população uma idéia da gravidez na adolescência associada à promiscuidade, prostituição, abandono familiar, ausência de parcerias conjugais, vulnerabilidade maior à pobreza e à violência. Constatamos também que a responsabilidade pela gravidez é atribuída exclusivamente às adolescentes mulheres e seus pais.

No contato com informantes fomos percebendo que o ethos rural interferia na concepção sobre a idade ideal para se engravidar. Embora os/as adolescentes de São Domingos estejam sob permanente influência urbana (Santa Cruz do Capibaribe) ainda recebem influências da socialização de suas famílias de origem quanto à sexualidade e padrões de reprodução. O que por si só já representa um elemento importante para analisar as causas da gravidez neste fase de vida.

A maior autonomia e liberdade sexual entre os/as adolescentes, transformam os padrões de comportamento mas estes não encontram suporte para a vivência dessa liberdade/autonomia de forma assistida e segura. Há uma ausência de programas de saúde voltados à orientação sexual e reprodutiva para a população em geral e também para os jovens.

Para além das influências sociais, aspectos subjetivos interagem com esta problemática. A noção construída sobre gravidez é por demais homogênea nas representações culturais locais. O despertar para o desejo de engravidar não pode ser pensado indiscriminadamente segundo critérios geracionais. A busca de liberdade/autonomia e conquista da fase adulta muitas vezes fica embutida no aparecimento da gravidez na adolescência, pois, concretiza-se junto com ela a possibilidade de vir a formar um novo grupo familiar, com independência em relação aos grupos familiares de origem. Daí porque nos parece um equívoco pensar que a gravidez nesta fase de vida é necessariamente indesejada.

Mudanças sociais no campo da família e principalmente no estabelecimento de parcerias conjugais nos parecem também importantes para abordar este tema, pois, gerações anteriores se defrontaram com a gravidez na adolescência de outra maneira. Nossas avós receberam aceitação diante da condição de gestantes mesmo quando jovens e isso não ocorre mais. Ao nosso ver esta mudança nos níveis de aceitação estão relacionadas à ausência de parcerias conjugais junto às grávidas adolescentes de hoje.

Conflitos geracionais no interior da família se concretizam em aspectos relativos à sexualidade e reprodução. Pais realizam queixas de falta de informações e estratégias para poder orientar seus filhos nesta área de conhecimento e comportamento, e acabam reagindo com omissão e ocultamento, estratégia que adquire segundo eles, um significado preventivo diante do risco com o desconhecido. Diante desta realidade adolescentes se ressentem de diálogo e ficam obrigados a buscar informações e orientações em outros espaços de convivência: escola, amigos, parentes próximos de geração.

Finalmente o recorte de gênero na socialização das crianças cria diferenças fundamentais na compreensão entre adolescentes homens e mulheres. As mulheres costumam se responsabilizar pelas conseqüências dos seus atos no campo da sexualidade e contracepção e de outro homens vivem a sua sexualidade de forma despreocupada e não apresentam inquietações com a contracepção, além de demonstrarem menores conhecimentos sobre as diversas estratégias possíveis de serem utilizadas a fim de cuidar da saúde sexual e reprodutiva.

2. A experiência com as ações educativas no campo da sexualidade e contracepção

A partir das entrevistas realizadas planejamos o segundo momento do trabalho, a intervenção que realizaríamos junto aos profissionais de saúde e educação. Essa segunda fase se coloca como um grande desafio para os/as antropólogos/as que se vêem num processo de criação de alternativas junto, e para o "outro". É o momento de exercitar-se em campo, não mais no papel de investigador mas de favorecer o debate e reflexão sobre a situação vivenciada pelo grupo envolvido nas ações realizadas. E desse momento específico surgem questões importantes no que diz respeito a antropologia aplicada.

A principal questão que nos mobilizou inicialmente foi a necessidade de ter habilidade para lidar com valores diferentes e de certa forma contrários à perspectiva mais atualizada sobre a gravidez na adolescência e como, a despeito disso, poderíamos contribuir para a mudança. A escolha metodológica da intervenção, denotou o caráter que gostaríamos de empreender na nossa ação. Optamos por oficinas de sensibilização, uma vez que esta escolha possibilita a construção de um processo coletivo, onde não são confrontados os nossos saberes e o do grupo, mas sim as próprias representações e saberes trazidos por cada membro do grupo. Partíamos, portanto, das experiências vividas individualmente e relatadas no grupo, para através de várias estratégias (dinâmicas, brincadeiras, teatralização, colagens, desenhos e exibição de vídeos), colocarmos novas alternativas a serem discutidas, assim como informações corretas e desmistificadoras, principalmente em relação à sexualidade.

As oficinas realizadas demonstravam um perfil diferenciado de cada grupo, estando sempre no centro de polêmica destes, a questão do desejo das adolescentes de vivenciarem ou não nesta fase uma gravidez. O grupo de profissionais de saúde se mostrava dividido quanto à aceitação do desejo das adolescentes como aspecto importante a ser considerado tratando-se da gravidez na adolescência. Isso tinha como explicação, o fato de neste grupo haver a participação de pessoas de dentro e de fora da comunidade uma vez que estavam reunidos nele o PSF e o PACS. O primeiro composto por uma equipe vinda de outra cidade apresentou uma maior abertura para considerar o desejo de engravidar das adolescentes. Entre os profissionais de educação, verificamos uma maior simetria de trajetórias profissionais, o que possibilitava uma maior homogeneidade do grupo. Este aspecto foi decisivo para promover uma mudança mais coletiva em relação às resistências anteriores com a polêmica: sexualidade x desejo de engravidar x adolescência.

3.Antropologia aplicada e a teoria feminista

Realizada a descrição do cenário e ações desenvolvidas no projeto, passamos agora a tratar do objetivo central deste artigo, qual seja, a articulação entre antropologia aplicada, feminismo e saúde reprodutiva adolescente.

Para dar início à discussão consideramos importante tomarmos a antropologia e o seu papel nos processos socioculturais. Muitas páginas alimentaram um debate sobre o tema, principalmente entre as décadas de 50 e 60. Embora ênfases distintas fossem atribuídas aos diversos elementos envolvidos no assunto, duas questões serão levantadas para a discussão proposta neste trabalho: a relação entre métodos e fim da teoria social, perspectiva empreendida por Bastide e a relação entre pesquisa e mudança social debatida com maior destaque por Lucy Mair.

Roger Bastide (1979) situa a antropologia aplicada na evolução histórica da mudança de relação entre ciência e prática, que vai desde Descartes até Marx. Entre as diferentes tensões provocadas por esse debate afirma que a antropologia aplicada constitui uma ciência teórica da prática e não uma ciência aplicada à prática. Esta definição está relacionada com a preocupação em distingir papéis diversos que interagem numa intervenção antropológica. Para Bastide deveria existir uma clara divisão de trabalho entre os especialistas das ciências sociais e entre os beneficiários da ação de mudança planejada. Estas fronteiras não são muito destacadas por Lucy Mair. Para esta autora mudança social e antropologia aplicada constituem dois lados de uma mesma moeda, e embora distinguindo papéis entre antropólogos e colonizadores na história, a ênfase recai mais sobre os conflitos, os aportes e as limitações existentes nas diversas iniciativas da antropologia à frente do trabalho nas colônias, do que na divisão de trabalho entre cientistas sociais e homens práticos.

Strathern (Kofes:1996) afirma ser um mito aquele que sugere que foi o feminismo que motivou na antropologia, o estudo sobre mulheres e sobre as relações masculino e feminino e o que considera que a antropologia e as teorias feministas, ou a antropologia inspirada por estas teorias, não comportam diferenças e inovações em relação aos estudos anteriores. Não é casual segundo a autora que em 1949 tenha se escrito Macho e Fêmea de Margareth Mead e O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir.

As questões debatidas na antropologia mostram bastante sintonia com alguns elementos trazidos pelo feminismo e a sua crítica à pretensa neutralidade científica. Desconstruindo a objetividade, o feminismo mostrou que os pressupostos e práticas científicas estavam contaminados pelo androcentrismo. Para sanear estas distorções, diversas pesquisadoras propuseram o fim da separação sujeito-objeto. Esta nova perspectiva aponta - da mesma forma que a antropologia aplicada - para uma modificação nos meios e fins do trabalho científico. Propõe quebrar a divisão de trabalho presente na pesquisa acadêmica, na relação com seu objeto de estudo e na necessidade de interagir com o mesmo. O feminismo concretizou estas posições tanto a nível metodológico, construindo uma estratégia de valorização dos diversos saberes das mulheres, como nos objetivos da ação científica, quebrando a pretensa neutralidade e se posicionando claramente a favor do seu objeto de trabalho e propondo abertamente benefícios em seu favor.

Para além das contribuições ao debate sobre a construção da ciência, o feminismo foi protagonista de ações políticas e foi também responsável pela formulação de novas estratégias para lidar com questões relativas à saúde e sexualidade, partindo do pressuposto da desnaturalização das relações de gênero. Aqui podemos localizar pontos de confluência. No tema de interesse deste artigo podemos nos referir às pesquisas de Margareth Mead (1969e 1978) e até mesmo de Evans Pritchard. Embora este último, sem uma ênfase maior sobre os aspectos relativos à relação entre cultura, gênero e adolescência, descreve a relação mãe-filho e pai-filho entre os Nuer, referindo-se às mães solteiras que naquela sociedade eram consideradas como pessoas não adaptadas à vida conjugal, sem que isso as levasse a acusações de imoralidade (ARAGÃO,1983). Já a obra Adolescência em Samoa permite se somar na desconstrução de idéias pré-estabelecidas sobre adolescência em geral, e também sobre a sexualidade entre mulheres e homens durante a juventude.

Após todas estas considerações fica mais claro que combinar a antropologia e o feminismo não se trata de um empreendimento novo, o que pretendemos é reatualizá-lo através da nossa experiência num projeto de atuação na área de educação voltada para a gravidez na adolescência.

4.Considerações críticas à antropologia e feminismo a partir desta experiência

A pesquisa e intervenção em São Domingos trouxe-nos a experiência de lidar

com conflitos advindos de um trabalho aplicado, o que nos fez concluir que para a realização de uma intervenção se faz necessário uma profunda aproximação da realidade e sua representação nos grupos para os quais as ações se dirigem. A antropologia fornece instrumentos para essa aproximação uma vez que ressalta a necessidade de compreender o outro nas suas variadas dimensões, estando implícito aí o respeito pelas diferenças com as quais entramos em contato. No entanto numa experiência aplicada, a mudança se apresenta como algo que vamos nos defrontar e nesse momento é vital que essa não seja imposta mas decidida e combinada pelo grupo em questão.

Esta postura se associa ao que Marc Augé (1996), em seu livro O sentido dos outros discute como uma alteridade com dupla acepção. A primeira equivalente ao outro como objeto e a segunda como o sentido que o outro elabora. Nessa segunda acepção o outro adquire o lugar de sujeito. Diante disso a antropologia é redimensionada partindo das identidades e da alteridade .

"...Si a antropología es ante todo uma antropología de la antropología de los otros, ello no se debe a que no hayan definido una série de relaciones "normales" (instituídas e simbolizadas) entre generaciones, entre primogénitos y cadetes, entre hombres y mujeres, entre aliados, entre linajes y extranjeros, etc. La primera tarea del antropológo consiste en determinar esse documento de la identidad y de la alteridad relativas...".

Em se tratando da sexualidade e saúde reprodutiva adolescente consideramos que a noção do outro como sujeito leva a redefinir a relação entre reprodução e desejo, reprodução e parceria conjugal, reprodução e dinâmica geracional, reprodução e responsabilização, reprodução e autonomia/informação considerando a especificidade da adolescência e o olhar da sociedade sobre eles/as.

Em que pese a tentativa de retirar a reprodução de um espaço isolado e trazê-la para um contexto mais amplo das políticas públicas e relações sociais a partir das contribuições feministas, verificamos a necessidade do conceito de direitos reprodutivos ser ampliado no sentido de incorporar diferenças existentes no interior desses grupos sociais, isto implica por exemplo, em considerar o aspecto geracional como uma dimensão importante na análise das mudanças sociais, principalmente no campo da sexualidade.

http://www.ufpe.br/proext/images/publicacoes/cadernos_de_extensao/saude/gravidez.htm



Nenhum comentário: