Para mim, Aldeia representa o bucólico, a parte do
Recife que ainda tem jeito. Traz recordações da infância e adolescência, dos
banhos nas quedas d´água quando fui escoteiro, dos passeios de bicicleta quando
pedalava solitário, experimentando o contraste de sombra e sol, frescor e
calor, nas curvas da estrada ladeada de matas ou de cana.
Desse tempo, me lembro do coentro e da alface que eu plantava na granja do meu pai, verduras que respondem rápido a quem deseja ver o verde crescer e colhê-lo em pouco tempo; dos pés de macaxeira rosa, arrancados da terra fofa, para depois quebrar a raiz com a mão e vender aos parentes, mercado cativo daquele sobrinho ou neto querido. Mas também recordo dos bichos-preguiça que surgiam do mato e das raposas reconhecidas pelo cheiro, que não se deixavam chegar perto.
Pois no Dia do Meio Ambiente, a convite do Fórum
Socioambiental de Aldeia, tive a oportunidade de fazer palestra sobre este
espaço que me marcou. Mas não falei sobre as lembranças pessoais e, sim, sobre
uma possível gestão ambiental equilibrada, indispensável para que sua unidade,
enquanto paisagem e destino privilegiado de se viver, continue existindo.
Sabendo que, em princípio, os anfitriões eram mais
conhecedores do que eu - não morador da área - sobre os problemas e virtudes
dessa zona que envolve parte ou o todo de sete municípios, resolvi apenas ser
facilitador de reflexões, em uma espécie de oficina relâmpago, de duas horas,
para que apresentassem percepções, convicções e dúvidas, na expectativa de se construir
um quadro orientador de ações futuras. Se não isso, pelo menos que contribuísse
para tal.
Estimulei então que o grupo presente exercitasse
apresentar as possíveis visões do território pelos diferentes atores sociais e
políticos que atuam sobre ele, e daí buscasse entender os interesses, por vezes
conflitantes, sobre a região. Para isso, foi preciso que os participantes se
assumissem na pele de cada segmento, evitando contaminar essa percepção com a
sua própria, dando uma chance para reconhecer valores e interesses de outros,
que não coincidem necessariamente com os seus, mas que não podem ser ignorados,
por efetivamente fazerem parte do jogo da gestão.
Assim, neste rico exercício, pudemos identificar
aquilo que seria a visão diferenciada do governo estadual, das prefeituras
municipais, dos empresários, dos moradores de baixa renda e de classe média,
dos ambientalistas e até da criminalidade.
Na perspectiva da visão do governo estadual,
entendeu-se que seu entendimento ainda não é sistêmico, enxergando-se
contradições entre o discurso conservacionista relacionado à Área de Proteção
Ambiental (APA) de Aldeia e as iniciativas do anel viário e do presídio. Por
parte dos governos municipais, o entendimento é que as prefeituras não se
motivam a ter uma visão diferenciada para este território, a articular soluções
integradas com as demais prefeituras e com o governo estadual. Elas, no máximo,
atendem a insistentes demandas de moradores em sua jurisdição. Talvez porque
Aldeia, como região de fronteiras municipais, represente espacialmente a franja
ou borda de alguns desses municípios.
Foi explicitada também uma ambivalência do setor empresarial, em que alguns apostam na manutenção da paisagem para o turismo sustentável, enquanto outros usam a imagem de natureza para vender as terras parceladas por empreendimentos imobiliários nem sempre compromissados com a preservação.
Foi explicitada também uma ambivalência do setor empresarial, em que alguns apostam na manutenção da paisagem para o turismo sustentável, enquanto outros usam a imagem de natureza para vender as terras parceladas por empreendimentos imobiliários nem sempre compromissados com a preservação.
Enquanto isso, os moradores, pelo menos aqueles de
classe média, optam por Aldeia atraídos pela liberdade de espaço, pelo clima e
pela tranquilidade. Mas, na percepção dos presentes, muitos deles apenas
idealizam um novo modo de viver, trazendo consigo, no entanto, os hábitos de
consumo e de agitação da metrópole, induzindo inconscientemente a mudança do
perfil da área. Já os de baixa renda buscam Aldeia como chance de emprego
e de ocupação de pequenos terrenos para moradia, escassos onde moravam, não
enxergando as matas com interesse, a não ser como oportunidade de lenha e
madeira.
E os ambientalistas, o que esperam de Aldeia?
Consideram-na o seu ponto de fuga, a possibilidade de viver os próprios
conceitos. Ainda encontram belos espaços de floresta e água, esconderijos do
silêncio e oportunidades de se manter em uma economia paralela à de consumo, a
da arte, da formação pessoal e do exercício espiritual. Mas, aos poucos, se
sentem encurralados pelos sons eletrônicos das multiplicadas casas de festejos,
pelos novos parcelamentos do solo e eventuais assaltos.
Ainda bem que Aldeia não é o lugar ideal para a
criminalidade, personificada naqueles a quem chamei na ocasião de almas
sebosas. Embora existam algumas oportunidades, ainda é mais fácil atuar em
áreas urbanas, usando essa região mais como rota de fuga.
Nas múltiplas visões, sente-se claramente uma diferença entre as dos governos e da sociedade. Em princípio, isso não deveria acontecer, uma vez que em uma democracia os governos foram feitos para o povo e pelo povo, portanto, com interesses coincidentes. Porém é possível entender a discrepância de olhares em relação à gestão ambiental do território.
Nas múltiplas visões, sente-se claramente uma diferença entre as dos governos e da sociedade. Em princípio, isso não deveria acontecer, uma vez que em uma democracia os governos foram feitos para o povo e pelo povo, portanto, com interesses coincidentes. Porém é possível entender a discrepância de olhares em relação à gestão ambiental do território.
O cidadão enxerga primeiramente os problemas
ambientais locais, à sua porta ou no seu entorno. Só quando busca solucionar
esses conflitos e se associa a vizinhos, descobre que a questão é mais ampla e
reconhece que a problemática é, no mínimo, regional, o que lhe exige se
associar em grupos organizados e buscar influenciar as políticas públicas. Ou
seja, o olhar pela sociedade é do micro para o macro, na perspectiva de se
atingir uma gestão ambiental que atenda à coletividade.
Já os governos enxergam as mesmas questões a partir
do macro, reconhecendo que é preciso compreender as grandes questões para então
formular políticas públicas, que depois permitam a definição de diretrizes
governamentais e a elaboração de programas (incluindo orçamento), que possam
viabilizar projetos locais. Esses, sim, de interesse final do cidadão. Mas é
certo que, muitas vezes, esse laborioso e longo processo se perde no meio do
caminho e o discurso das autoridades se dissolvem nas entranhas da máquina
pública ou desaparecem quando acabam os seus mandatos.
Portanto, o grande desafio da gestão do interesse público, e nele se inclui a gestão ambiental, é de os governos enxergarem no seu fazer a necessidade local e os grupos sociais organizados enxergarem a política pública como essencial para gerar mudanças locais permanentes e sustentáveis.
Nesse contexto, se apresenta a Área de Proteção Ambiental (APA) de Aldeia, recém-criada pelo Governo do Estado por demanda do Fórum Socioambiental de Aldeia, como excelente oportunidade da gestão ambiental compartilhada. Mas esse assunto fica para outra crônica.
Portanto, o grande desafio da gestão do interesse público, e nele se inclui a gestão ambiental, é de os governos enxergarem no seu fazer a necessidade local e os grupos sociais organizados enxergarem a política pública como essencial para gerar mudanças locais permanentes e sustentáveis.
Nesse contexto, se apresenta a Área de Proteção Ambiental (APA) de Aldeia, recém-criada pelo Governo do Estado por demanda do Fórum Socioambiental de Aldeia, como excelente oportunidade da gestão ambiental compartilhada. Mas esse assunto fica para outra crônica.
( Ricardo Braga)
RICARDO BRAGA é ambientalista, professor da UFPE e ex-secretário executivo de Meio Ambiente de Pernambuco
RICARDO BRAGA é ambientalista, professor da UFPE e ex-secretário executivo de Meio Ambiente de Pernambuco