Os Gangarras do Bandeira. História de um povo em busca de
suas raízes
Descendentes
dos primeiros holandeses, Gangarras do Bandeira driblam a miséria e o
preconceito
André
Duarte - Da equipe do DIARIO - DIÁRIO DE PERNAMBUCO - INTERIOR. 08/03/2005.
Eles são
loiros, têm olhos claros, pele alva e continuam vivendo em regime de reclusão
involuntária em pleno Agreste. Numa pequena vila rodeada por casas de taipa,
ruas de terra batida e total ausência de infra-estrutura, 340 pessoas tentam
manter uma história registrada apenas pela tradição oral. Tratam-se dos
Gangarras do Bandeira, remanescentes de uma comunidade encravada a seis
quilômetros do município de Brejo da Madre de Deus. Pouco se sabe do passado,
mas o preconceito dos moradores da cidade acabou batizando a todos. O termo
gangarra surgiu de um periquito de cor amarelada e de canto estridente, numa
referência à cor dos cabelos e ao sotaque frenético dos moradores do Sítio
Bandeiras. Ninguém sabe ao certo como seus antepassados chegaram até lá,
tampouco a origem de características físicas tão distintas do povo da região.
Foto: Casas de taipa denunciam a
pobreza da comunidade localizada no município de Brejo da Madre de Deus.
Exceto
pelo aspecto europeu e do passado misterioso, pouca coisa difere o cotidiano
vivido por qualquer morador da zona rural. A agricultura familiar vem sendo a
fonte de subsistência há séculos, acrescentada da pesca proporcionada pela
grande bênção da população: a Barragem do Machado. No entanto, a falta de
políticas públicas, aliada à consciência histórica abalada pela falta de
vestígios concretos do passado, fez dos galegos do Bandeira um povo esquecido
nas barbas de um grande pólo de desenvolvimento econômico, impulsionado pelas
indústrias de confecção de Santa Cruz do Capibaribe e Toritama.
Pobreza - Além de duas igrejas
minúsculas, sendo uma católica e outra evangélica; uma pequena escola primária;
uma mercearia e um bar improvisado; nada mais lembra a vila próspera de
mercadores e agricultores que gerou algumas personalidades marcantes do início
do século 20. Exceto por bicos conseguidos em cidades vizinhas, a sobrevivência
dos gangarras depende de poucas cabeças de gado, que se alimentam da única
cultura resistente ao verão: a palma.
Foto: Jovens ainda predominam
entre as 340 pessoas que vivem na vila.
A pobreza
acabou gerando o êxodo e, conseqüentemente, comprometendo a continuidade da
tradição e da perpetuação da identidade local. "Só ficaram os que não
puderam pagar aluguel em Santa Cruz do Capibaribe. Uns foram para São Paulo,
mas não voltaram por falta de dinheiro mesmo. Minha sorte é que eu abri esse
bar e tem uns aqui que bebem tanto que dá pra sobreviver", revela José
Manoel da Silva, proprietário do único bar, que costuma concentrar diariamente
dezenas de jovens desempregados da vila. Nascido e criado na comunidade, Cícero
José da Silva, 65, lembra muito bem dos atritos entre os gangarras e os
moradores de Santa Cruz do Capibaribe em função das brincadeiras com a cor da
pele e dos cabelos. "Antigamente tinha muita briga com o povo da cidade
por conta disso. Hoje em dia está mais calmo. Mas a pobreza sempre foi muito
grande e acabou piorando com a seca. Hoje em dia eu me incomodo é com a
situação da gente. O apelido eu até gosto".
Pobreza local gerou êxodo dos
moradores, que acabaram migrando para cidades vizinhas ou para a região Sudeste.
Falta de estudo aumenta estigma
A
incerteza sobre os antepassados e inexistência de documentos que comprovem a
origem da vila do Bandeira acabou proporcionando aos gangarras o estigma de
povo sem passado. Entre as famílias, pouco se sabe sobre como foram parar no
Agreste. O mistério sobre o legado histórico deu margem a correntes sobre a
origem de característica tão pitoresca, mas em todas elas, somente a hipótese
da ascendência européia que levariam no sangue serve como tese de convergência.
Exceto por iniciativas isoladas, pouco foi documentado sobre o assunto a ponto
de revelar com segurança a herança genética dos galegos. A versão mais seguida
pelos moradores aponta que a comunidade é fruto da rebeldia de um grupo de
vinte holandeses, que se recusaram a deixar a então província de Pernambuco
durante a expulsão holandesa, em 1654. A falta de dinheiro para viabilizar uma
mudança para outra colônia e o desinteresse em voltar à terra natal teriam
levado o grupo a fugir dos portugueses se embrenhando as margens do rio
Capibaribe até encontrarem um esconderijo no Agreste. Os gangarras não sabem,
mas seriam descendentes dos únicos holandeses que driblaram a Restauração
Pernambucana. "Trata-se de uma minoria que não pôde voltar e que encontrou
no local onde hoje está a vila um esconderijo seguro", aponta o pesquisador
Ronaldo Nerys, defensor da tese holandesa. Diante da omissão do poder público
no resgate da identidade dos gangarras, Nerys fundou, em parceria com outros
estudiosos, o Instituto Pernambucano de História, Arte, Cultura e Cidadania, de
onde já surgiram outras vertentes para a origem do povoado. A mais recente
aponta que a razão dos traços arianos nada mais é do que uma influência
genética de antepassados portugueses da região do Douro, onde a mistura com os
espanhóis resultou num semblante parecido como os invasores dos Países Baixos. O
passado religioso também é outra incógnita. Mesmo sob tradição católica, paira
no ar uma aura judaica difícil de ser fundamentada. "Na região há uma
mistura entre cultura judaica e tradição moura. Talvez isso explique a vocação
para o comércio", diz Nerys.
Suposta pedra guarda resposta
Uma pedra
perdida nos arredores da zona rural de Brejo da Madre de Deus é encarada por
pesquisadores como a chave para a comprovação da origem européia dos Gangarras
do Bandeira. Os moradores mais velhos, a maioria já falecida, costumava contar
aos filhos sobre a existência de uma rocha crivada por quatro moedas de bronze
e com dizeres em uma língua desconhecida. O local ainda é incerto à nova
geração, mas a tal peça está sendo procurada por pesquisadores, que vêem na
grafia estrangeira marcada na pedra o sinal indiscutível da presença européia
na região. "Os mais velhos relatavam que tinham umas inscrições em outra
língua. Identificamos que pode ser uma grafia de origem flamenca, o que comprovaria
essa linha de estudo sobre a origem holandesa. Já andei muito atrás dela, mas é
preciso tempo e dinheiro para localizá-la", aposta Ronaldo Nerys, que
busca apoio da Embaixada da Holanda para viabilizar as buscas.
Em 2004,
o documentário Gangarras do Bandeira, produzido pela Fundação Joaquim Nabuco
(Fundaj), proporcionou aos moradores o primeiro retrato da comunidade a partir
da ótica da população. A diretora Cátia Oliveira, que conduziu as filmagens
juntamente com Lulla Clemente, instituiu um prêmio ao morador que achar a peça.
"Não tivemos tempo para procurar a pedra, mas a idéia é dar continuidade
ao projeto”. Os mais novos contam que a existência da rocha tomou ares de lenda
antes do interesse dos pesquisadores. "Já me disseram que a pedra veio do
Egito. Os moradores mais velhos contavam que a pedra ficava a uns seis
quilômetros da vila, mas o pessoal daqui nunca se interessou. Não tenho idéia
de onde minha família veio. Talvez agora possa dizer pro povo da cidade que sou
um galego do estrangeiro", diverte-se José Severino da Silva.
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